ONU 80 anos: entre o ideal e a crise

Líderes de quase 200 países voltarão a se reunir em Nova York, tentando, ainda que entre ruídos e disputas, manter viva a chama da diplomacia. (Foto: Valéria Bertoloti)
Por Silas Avila Jr
Nova York – Criada em 1945, após a devastação da Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas completa 80 anos em meio a questionamentos profundos sobre sua relevância e capacidade de ação. A 80ª sessão de alto nível da Assembleia Geral, que reúne esta semana em Nova York 193 Estados-membros e dois Estados-observadores, acontece sob um pano de fundo marcado por guerras, tensões geopolíticas e descrédito na força do multilateralismo.
O contraste entre o ideal e a realidade é gritante. Em 1954, Dag Hammarskjöld, então secretário-geral da ONU, disse que a organização “não foi criada para nos levar ao céu, mas para nos salvar do inferno”. Hoje, diante de um mundo com 61 conflitos armados registrados em 36 países apenas em 2024, segundo o Instituto de Pesquisa da Paz de Oslo (PRIO) e a Universidade de Uppsala, a pergunta é se a ONU ainda consegue evitar que esse inferno avance.
Dois epicentros dessa crise humanitária, Ucrânia e Gaza, simbolizam os limites da ONU em mediar guerras que desafiam sua autoridade. O Conselho de Segurança, paralisado por vetos e disputas entre potências, ilustra a incapacidade de reforma: permanece estruturado como em 1945, mesmo com a ascensão de blocos como os BRICS, que já representam 45% da população mundial e 35% do PIB global, mas têm apenas dois assentos permanentes, contra três do G7.
A situação se agrava com o reposicionamento dos Estados Unidos. Desde o início de seu segundo mandato, Donald Trump tem reduzido o financiamento, retirado Washington de organismos-chave como a OMS, a Unesco e o Conselho de Direitos Humanos, e até restringido vistos de delegações, como no caso dos palestinos este ano. O orçamento apresentado por sua administração prevê cortes de quase US$ 1 bilhão, ameaçando diretamente a sobrevivência de programas essenciais da ONU.
Neste contexto, o discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganha peso político. Como manda a tradição, o Brasil abre os pronunciamentos da Assembleia, e deve insistir na defesa do multilateralismo como ferramenta de equilíbrio para países médios. Para o Brasil, abdicar da ONU significaria abdicar também da sua autonomia diplomática, conquistada ao longo de décadas.
Representar o Diário do Vale e cobrir esse momento in loco é testemunhar a história se desdobrando em tempo real. São sete anos acompanhando a Assembleia Geral e os trabalhos da ONU como correspondente internacional. Recordo, em especial, a coletiva restrita devido ao covide concedida pelo secretário-geral António Guterres em 2020, quando apenas dez jornalistas do mundo inteiro estavam presentes, honra que tive no aniversário de 75 anos da ONU. Hoje, no aniversário de 80 anos, a sensação é de déjà vu: o mesmo Guterres continua alertando sobre o colapso iminente da ordem global, mas o mundo parece ouvir cada vez menos.
O futuro da ONU pode não estar garantido. Mas, por uma semana, líderes de quase 200 países voltarão a se reunir em Nova York, tentando, ainda que entre ruídos e disputas, manter viva a chama da diplomacia. A ONU pode não nos levar ao céu, mas talvez ainda possa evitar que caiamos no abismo.
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Agatha Amorim